junho 20, 2014

Entreporos

É um cheiro intoxicante, na verdade. O calor vai subindo pela nuca, abrindo os poros da pele. Dilatados, os poros exalam aquele cheiro, uma mistura de grama, açúcar queimado e bolinho de chuva. É aquele cheiro de ser gente, de estar tão irredutivelmente preso a si mesmo que seu corpo convulsiona em suor. Cheiro de creolina. Escorre pelo pescoço e desce pelos braços, lembrando que mesmo à noite os corpos suam. Cheiro de gente. O mormaço se mistura com esse teu cheiro, que, agora, deixa o quarto impregnado. E não adianta: há de me acompanhar até a hora de dormir. Deito a cabeça no travesseiro e lentamente ele suga todo esse meu cheiro pra dentro dele. Só assim, sem perceber, que meu corpo se esquece de me lembrar que eu sou eu. Ou você? Não importa, pois fico ali preso no tecido do travesseiro quente, e meu corpo nada mais é que um peso em cima do colchão. Estou lá dentro da fronha, dos lençóis, das molas. Cheiro de sono. Todos os sonhos guardados nos espaços vazios entre um tufo de tecido e outro. Desejos, amores, gritos e temores presos na malha do algodão. Cheiro de sonho. Mas logo ali, 06:05 da manhã, meu travesseiro me vomita pra dentro do meu corpo. Acordo sentindo os pés pesados: esse sabor de ser si mesmo demora pra se espalhar de volta pros braços, pernas, tronco. E o calor não ajuda. Cheiro de remela. Lentamente, essa presença vai subindo os joelhos, coxas, umbigo, pescoço. E, então, logo que eu sou eu de novo. A minha presença me inebria, e é por isso que sou indeciso: a cada dia que acordo, sou outro. Cada respiração é uma lembrança de que meu corpo me esvazia e me preenche de mim em um fluxo contínuo de ser, não-ser e vir-a-ser eu mesmo. Ou você? Cheiro de gente. É tudo culpa do travesseiro, na verdade. Esse meu cheiro some uma vez que deito na cama, e o perigo tóxico do cheiro do suor fica todo escondido ali, debaixo da coberta quente. Não porque esteja calor, mas porque o frio me obriga a escarafunchar ainda mais no travesseiro. Cheiro de penumbra. Mas onde estou mesmo? Não sou você, isso não é possível. Mas também não sou eu. E, se não sou o travesseiro, quem somos? Cheiro de gente que não sabe dizer quem é, cheiro de creolina, cheiro de suor, cheiro de banho, cheiro de sono, sonho, cheiro de tesão. É tóxico: cheiro de gente é sempre tóxico. Mas cabe perguntar: quem é mesmo que se intoxica? Quem é que morre? Não pode ser eu, já lhe disse, e também não pode ser você. E, se não somos o travesseiro, então somos tudo isso. Somos cheiro. Não pode ser tóxico aquilo que mata quem nunca existiu. Não há como o perfume nos matar se nunca fomos nós. Afinal, somos o que além de cheiro?

junho 11, 2014

Não venha se sentar à mesa

Não venha se sentar à mesa
Porque hoje não vai ter copa
Vem passar fome do meu lado
Hoje só tem grito, futebol e tropa.
Vem se fazer de trapo
Porque na nossa copa não tem comida
Na nossa mesa não tem almoço
Mas tem TV colorida
Na copa da nossa cozinha
Não tem pães nem paneladas
Não vejo carne
Não vejo codorna
Vejo a falta em 42 polegadas.
Você me pergunta o que tem de janta
Mas insisto que na minha copa não tem nada!
Eu vejo a falta do jogador,
Mas quem é que dá pela minha falta?
Pela visão periférica
Fechos os olhos pra periferia
Aborto meu filho sofrendo
Mas pelo menos não aborto a festa
De ver a torcida perdendo
Torço o pano sujo
Na copa dos imundos
Pra limpar meu rosto suado
Mas imagina que bonito vai ser
Os jogadores entrando no gramado.
O juiz me dá cartão amarelo
Bem queria que fosse uma carne vermelha
Branca, parda, negra,
De boi, vaca ou ovelha.
Não venha se sentar à mesa, meu bem,
Não me olhe com essa boca sofrida
Vamos ficar na torcida
Esperando pra ver se alguém consegue
Transformar gol em comida.

junho 09, 2014

Beijo-peão não se (re)corda

- Não se recorda do beijo?
- Que beijo?
- Ontem.. o beijo, minha boca, a tua, o calafrio nos pés, arrepio na nuca.
- ...
- Não se recorda?
- ?
- O beijo!
- Que beijo? Como me podes pedir pra relembrar o beijo embriagado de (ante)ontem? O que é o que você se lembra, senão a figura decrépita de um momento? Diferente de lembrar-se de um discurso, d'uma aula, dos números de uma conta de banco, beijo não se memoriza, não se guarda, não se esconde atrás de nostalgia. Beijo se recorda beijando. Tal como um peão que, uma vez solta a corda, não se pode mais (re)cordar. Já é outro peão, outro beijo. Não me recordo do beijo não porque me esqueci, meu amor, mas porque não há o que se lembrar. A corda já foi lançada, não dá pra recordar. Não hã memória, recordação nem lembrança que me faça sentir tua boca na minha. Não quero lembrar dos teus beijos: te quero é beijar. 
- E o que resta?
- Nada. Só outro beijo. E outro. E mais uns. Minha boca. A tua. O calafrio nos pés. arrepio na nuca.

junho 08, 2014

Vendaval

O vento aprendeu meu nome, 
e fica aí cantando minha sorte. 
O problema é que cada hora ele sopra pra um lado, 
só de pirraça,
de mania,
e meu destino
antes tão certo, 
agora se faz mudar ao humor da ventania.

junho 05, 2014

Fresta

O que mais ela quer? Silêncio. Feche as janelas, tranque a porta - mas deixe a chave na fechadura. Não que ela queira sair assim, depressa. Mas é que pra ficar em silêncio tem que fechar esse nosso quarto por todos os buraquinhos: passa muito vento pela fresta da fechadura. E só depois então, com os corpos azeitados de silêncio, é que se pode começar a falar. Do quê? Do amor, do ódio irremediável, da ressaca, do silêncio. E, novamente, silêncio. O que fazem eles a não ser escutar? Sua mudez categórica me ronda, me perplexifica, e no vácuo em que digo as palavras, ecoam menos os verbetes do que o pulsar das artérias. E esse som bate nas paredes, ecoa nas janelas, na porta fechada - e não escapa por nenhum fresta. Novamente, silêncio. E ficamos ali, ouvindo a mudez orquestral do nosso corpo. 
E então, silêncio.